Assédio sexual e injustiça epistémica

Catia Faria
5 min readMay 9, 2021

Estes dias teve lugar o que provavelmente é a primeira denúncia pública de assédio sexual levada a cabo contra um homem proeminente da esfera cultural portuguesa. Apesar da solidariedade manifestada à denunciante, Joana Emídio Marques, um número preocupante de pessoas, várias das quais mulheres, solidarizaram-se publicamente com o alegado agressor, Manuel Alberto Valente. Há diferentes formas de olhar para esta questão. A mais comum tem sido sucumbir à narrativa patriarcal segundo a qual as mulheres são, nalgum sentido moralmente relevante, tão más ou piores do que os homens. Isto é, não solidárias, desleais e oportunisticamente cruéis entre si. Até certo ponto, é uma reação de frustração legítima face à realidade quotidiana da violência patriarcal e ao negacionismo de género generalizado. Mas, como quase todas as reações viscerais, ignora dimensões importantes deste fenómeno.

Em primeiro lugar, independentemente de ser falsa ou verdadeira, a própria ideia de que as mulheres não são solidárias entre si é uma construção social cuja finalidade é manter um sistema de organização da sociedade que beneficia, largamente, os interesses masculinos. Parece evidente que, se as mulheres estão ‘entretidas’ a competir e a boicotarem-se entre si, sobra menos espaço e energia para diagnosticar e combater a injustiça de género. Mas, mais importante, a ideia de que as mulheres não são solidárias entre si conduz a que as mulheres atuem com base nessa ideia. Por exemplo, não denunciando uma agressão sexual, dada a expectativa de falta de solidariedade por parte das outras mulheres.

Isto é particularmente relevante porque explica, em larga medida, por que razão as mulheres são, em geral, reticentes em denunciar agressões sexuais. As mulheres não denunciam agressões sexuais porque sabem, ou creem saber que, tal como aconteceu no caso da Joana Emídio Marques, as outras mulheres não irão apoiá-las. Os efeitos diretos deste retraimento na perpetuação do sistema patriarcal e do privilégio masculino são evidentes, mas indiretamente são ainda mais perversos, uma vez que, ao atuar desta forma, as mulheres afastam-se cada vez mais da possibilidade de formar um grupo coeso com outras mulheres, perdendo, entre outras coisas importantes, a oportunidade de falsificar a sua crença inicial.

É importante notar, contudo, que o retraimento em denunciar o assédio sexual é, em si mesmo, produto de um tratamento injusto mais amplo de que são alvo as mulheres no processo de transmitir conhecimento. Ou, nas palavras da filósofa Miranda Fricker, trata-se de mais uma instância de injustiça epistémica. Uma das variantes mais comuns de injustiça epistémica é a injustiça testemunhal que se produz quando a palavra de alguém recebe menos credibilidade, devido a um falso estereótipo sobre o grupo social ao que pertence. Por exemplo, o estereótipo de que as mulheres tendem a atuar com base na emoção e não na razão e, por conseguinte, a sobredimensionar relatos e a reagir de forma desproporcionada/exagerada ao que lhes acontece.

No caso em apreço, produz-se uma injustiça epistémica, em particular, uma injustiça testemunhal, quando Joana Emídio Marques tenta transmitir o seu conhecimento experiencial sobre assédio sexual e sobre as dinâmicas de poder baseadas no género em contexto laboral e não se lhe atribui a credibilidade que merece. Pelo contrário, o seu testemunho é desacreditado e descartado com o objetivo de manter as estruturas de poder existentes e deixar intacto o edifício do privilégio masculino.

Existe, não obstante, uma outra variante de injustiça epistémica que explica, em meu entender, a reação aparentemente não solidária de muitas mulheres face a esta denúncia de assédio sexual. Trata-se da injustiça hermenêutica. A injustiça hermenêutica ocorre quando alguém é incapaz de identificar uma experiência de ‘vitimização’ (a sua ou a de outros) por não possuir os recursos interpretativos necessários para caracterizar os eventos em questão como prejudiciais. O exemplo central que utiliza Miranda Fricker para ilustrar este fenómeno é, precisamente, o do assédio sexual.

Ao longo de toda a história, as mulheres têm sido vitimas de assédio sexual. Contudo, só nos anos 70 do século 20 é que o conceito de assédio sexual foi explicitamente introduzido na agenda feminista e posteriormente estendido ao discurso popular. Antes dessa altura, teria sido incrivelmente difícil para uma mulher identificar uma experiência de assédio sexual como assédio sexual e, mesmo depois, a sua experiência será mais ou menos inteligível para si ou para outros em função de quão bem dominem o conceito em questão.

Apesar de o conceito de assédio sexual existir formalmente em Portugal (por exemplo, está contemplado na lei) continua a não ser bem entendido culturalmente. Isto não é acidental, mas produto da negação sistemática do reconhecimento das mulheres como sujeitos iguais também na produção de conhecimento. Isto implica, por um lado, que muitas mulheres que são vítimas de assédio sexual neste país continuam sem conceptualizar a experiência como tal e que outras, apesar de dominarem o conceito, enfrentam enormes dificuldades em ser entendidas quando explicam as suas experiências a outras pessoas, incluindo as outras mulheres.

Creio que esta dificuldade geral assume contornos psicológicos específicos no caso das mulheres, uma vez que o reconhecimento do assédio sexual de outra mulher necessariamente acarreta uma revisão biográfica frequentemente dolorosa e retrospetivamente humilhante. Isto é, o reconhecimento de uma experiência alheia com determinadas características como assédio sexual, implica o reconhecimento pessoal de múltiplas experiências vividas como constituindo também assédio sexual. Este reconhecimento envolve constatar que se ocupou ou ocupa o papel pouco cómodo e, em ocasiões, pouco familiar, de vítima. E isto pode resultar particularmente insuportável para algumas mulheres porque choca com a imagem que têm de si próprias como mulheres autónomas, emancipadas ou mesmo feministas.

Tudo isto, creio eu, deveria fazer-nos repensar não só a nossa reação às denúncias de outras mulheres, mas também examinar cuidadosamente a nossa reação à reação de outras mulheres e evitar servir, uma vez mais, os interesses patriarcas incrustados no slogan das mulheres cruéis e não solidárias entre si. Ao contrário de Hannah Gadsby, não acredito que “não há nada mais forte do que uma mulher partida que se reconstruiu a si própria”. Mais forte do que isso é uma mulher partida que se reconstrói a si própria, cada dia, com ajuda de outras como ela ^1.

[1] Alguém poderia ainda dizer que talvez seja uma visão demasiado caritativa dos acontecimentos, dado haver fortes indícios de que, neste caso, parece haver um tratamento privilegiado de um homem específico pela razão de pertencer à alta cultura portuguesa. Mas isso não deveria afectar o que foi dito, uma vez que é evidentemente certo que, neste caso, assim como em tantos outros, nunca se trata só de uma questão de género, senão também e frequentemente uma questão de classe.

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